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Princípios básicos da ecografia

 A ultrassonografia é uma modalidade de exame dentro do chamado “diagnóstico por imagem”. Assim como os exames laboratoriais, os exames de imagem são aqueles que auxiliam o clínico generalista a obter um diagnóstico mais preciso. Muitas vezes a anamnese levanta na cabeça do clínico suspeitas e os métodos de auxílio ao diagnóstico o ajudam a afunilar as chances e por isso fornecer ao paciente um tratamento mais preciso e uma possibilidade de resolução mais acurada ou de um prognóstico mais certeiro. 


A emissão de ondas sonoras norteia a ultrassonografia. A maior parte de nós tem a capacidade de ouvir sons como vozes, músicas, barulhos… e conhecemos muito bem esse funcionamento. Sabemos que conforme nos afastamos da fonte do som, este fica mais fraco e conforme aumentamos ou diminuímos o volume, temos alteração na percepção do barulho. Sabemos também que barreiras entre a gente e a fonte do som também interferem no que ouvimos. Ao lembrar das aulas de física do ensino médio, talvez a gente recorde - ainda que vagamente - alguma coisa que o professor falava sobre ondas de rádio AM e FM. Caso você não se lembre, as ondas AM são aquelas de menor qualidade sonora e maior alcance físico (quem viajava de carro pelo interior do Brasil há alguns anos talvez se lembre que em determinadas regiões, somente as rádios AM funcionavam pois as antenas de rádio estavam muito distantes); as ondas FM são aquelas de maior qualidade de som, porém de menor alcance físico na propagação. 

Estou trazendo esses princípios à tona para que se estendam ao universo da ultrassonografia. Aqui também as ondas sonoras se comportam exatamente da mesma maneira que os sons e músicas que ouvimos por aí. Elas viajam no espaço e enquanto não encontram barreiras e seu comprimento de onda permite, seguem viajando. Quando encontram um obstáculo, as ondas sonoras podem refletir em forma de eco, voltando à sua origem com praticamente as mesmas características com que saíram. O eco é quem dá seu nome à ecografia. Veja que brilhante! A ecografia emite ondas sonoras que ecoam nas estruturas biológicas do paciente avaliado e retornam à origem - o transdutor - para formar uma imagem que é processada pelo aparato e interno do sonógrafo e torna-se visível para o avaliador. 

Voltando às ondas AM e FM (pensou que iria ficar livre delas?)… as AM são as ondas de menor frequência e as FM as de maior frequência. Quanto menor a frequência, mais baixa é a onda e por isso seu alcance é mais longo, já que ela dispensa menos energia para viajar longas distâncias. Quanto maior a frequência, mais alta é a onda e por isso menor é seu alcance, já que ela “se cansa” mais rápido por subir e descer tanto em pouco tempo. Isso tudo significa que os sons de menor frequência vão produzir uma imagem ecográfica de menor qualidade, mas com um alcance de distância maior, ou seja, perfeito para ser usado em pacientes maiores ou para atingir e avaliar estruturas que estão mais longe do transdutor/probe (a fonte de som). O contrário vai para os sons de alta frequência, que viajam menos, mas produzem uma imagem de maior qualidade, o que é ótimo para estruturas próximas às fontes de som e para pacientes menores. A frequência é medida em Hertz, então quanto mais Hz, maior frequência e vice-versa. 








Nessa ilustração você pode imaginar que a área a ser avaliada de um paciente será preenchida por um monte de ondas sonoras. O que lhe parece que ocupa mais espaço da área? A baixa frequência ou a alta? A alta frequência ocupa mais a imagem, mas não chega até o fim, enquanto a baixa frequência ocupa menos a imagem, mas vai até o fim dela, ilustrando o princípio da formação da imagem baseada em ondas sonoras. 

A ecografia baseia-se na emissão sonora e no retorno ou eco dela. Então, quanto menos densa for a estrutura avaliada, menos eco ela irá produzir e mais passagem do som irá permitir, por isso será chamada de anecóico ou “não produtora de eco”. Densidade média irá produzir eco, mas ainda permitirá a passagem do sim, por isso ser hipoecóica ou pouco/moderada produção de eco. A alta densidade de um osso, por exemplo, irá produzir muito eco, não permitirá a passagem do som e logo terá uma superfície hiperecóica e a produção de sombra acústica posterior, uma área onde o som não chegou, pois a reflexão de densidade da estrutura foi grande demais. 

Os líquidos por natureza propagam muito bem o som e por isso produzem pouco eco. Quem nunca fez um desafio com os amigos de tentar entender o que era dito em voz alta debaixo da água? A água propaga o som com muita eficiência pois é até menos densa do que o ar, daí a brincadeira de tentar entender o amigo tinha graça porque o som chega nos ouvidos do outro “acelerado”. Sem querer dar spoiler, mas para conseguir ser entendido debaixo d’água , basta falar mais devagar do que o normal, pronunciando as sílabas de forma exagerada como em um teatro. Tudo isso é princípio da propagação das ondas sonoras. Emocionante? Não muito, mas super legal? Sim! É também devido à densidade do ar versus a propagação do som que raspamos os pêlos dos pacientes peludos onde será feito o ultrassom e molhamos a pele com gel acústico. Como o nome diz, o ULTRAssom trata naturalmente de “ultra altas” frequências, que por natureza já se propagam por distâncias mais curtas, então quanto mais ajuda para que o som chegue onde queremos (nos órgãos da barriga, por exemplo), melhor. Antigamente os pacientes eram avaliados por ultra-sonografia dentro de uma tina d’água. Hoje não precisamos de mais tanto radicalismo para vermos com perfeição e nitidez o que está lá dentro. Inclusive, os softwares e outras tecnologias de formação e correção de imagem vêm trazendo muito conforto visual aos ultrassonografistas. 

Então, o que existe dentro dos mamíferos que é líquido? Isso mesmo! Sangue, urina, bile, plasma… o que existe dentro dos mamíferos que se assemelha a um tecido? Os parênquimas: fígado, baço, camada cortical de rins, parede de órgãos, gordura… dentro da classificação dos tecidos, vale um adendo para dizer que alguns são mais densos, como o tecido que compõe a prostata sadia, por exemplo, e outros são menos densos e intensamente vascularizados como a camada mucosa das alças intestinais, por exemplo. E finalmente, além do osso, o que mais estaria lá dentro - mesmo não podendo - que fosse super denso? Um corpo estranho, por exemplo. Uma agulha, uma linha, um brinquedo, uma chave de carro, uma peça de roupa… 

Essa lógica se estende para algumas alterações que podem ser detectadas na ecografia. Inflamações agudas costumam causar grande aporte sanguíneo e edema no órgão ou local de ação. Edema, sangue… tudo isso tem líquido, e por isso torna o órgão mais hipoecóico do que o habitual, talvez até aumentado de volume ou espessura. Processos crônicos, cicatrizes, por outro lado, já caracterizam aglomeração de tecido fibrótico, que é bastante mais denso e menos vascularizado do que o tecido sadio e por isso produzem muito eco, permitem pouca passagem de som. O que era isso? Hiperecogenicidade. 

A ideia principal aqui é que nada seja uma surpresa desagradável para você, ultrasonografista. Entendendo os princípios básicos da formação da imagem de ultrassom e combinando-os com seu conhecimento técnico de anatomia, fisiologia e patofisiologia, mesmo que a imagem nunca tenha sido vista antes, você saberá o que está havendo. Pode ser que você não saiba ou desconheça ou não lembre do nome específico da doença, mas você já vai poder determinar o tempo de ação, dar um prognóstico de funcionamento de um órgão, verificar sua vascularização e ajudar muito o clínico a entender o que está por dentro do paciente. Muitas vezes sua avaliação vai ser a diferença entre uma intervenção cirúrgica e o tratamento conservador. É uma grande responsabilidade, mas também uma enorme satisfação saber que seus fundamentos técnicos estão tão bons a ponto de ser a pessoa que irá fazer a diferença positiva. Lembre-se que existem grupos de trocas de ideia e experiências, que o seu laudo pode ser feito com calma e sossego e que a vida e as doenças são situações dinâmicas. 

Será que fazemos um post sobre Doppler? Se teve algo que gostei do ensino de exatas foi a física, e vê-la aplicada tão lindamente em meu dia a dia é realmente um deleite. 

O que vocês acharam do tema do post de hoje? Compartilharia com um amigo ou amiga? Obrigada por ter lido tudo; desejo a você muita inteligência e sabedoria sempre. O conhecimento está dentro de você! Vamos buscá-lo juntos!

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